Tinham viajado a trabalho, e
voltavam para sua cidade com urgência, rumo a um grande e imperdível show gospel, de uma banda internacional.
Tinham participado exaustivamente da organização do evento e criam que seria
uma grande oportunidade de colheita. Nos últimos anos, ambos tinham se
envolvido na igreja como nunca. Estavam presentes em todos os programas, a
maioria das vezes na organização. Lideravam pequenos grupos, tinham seus
próprios discípulos e passavam a maior parte do tempo na igreja. O show havia sido amplamente divulgado,
inclusive em rádios e jornais seculares, e teria forte ênfase evangelística.
Àquela hora, o sol já estava se pondo. O dia inteiro dentro de um carro dava
aquela desagradável sensação de corpo enrijecido, com dores nas articulações e
nas costas. Conversavam naquele instante, lembrando da cena que viram na
estrada, sobre a decadência da raça humana.
- O rapaz estava certamente
embriagado - dizia o motorista, enquanto
se espreguiçava com as mãos nas costas, à altura da cintura.
- Ou drogado – completava o
passageiro – mas certamente fora de si.
Lembraram da cena com um misto de
pena e desgosto; quase desprezo.
***
Era uma longa reta e o tempo
estava claro, com o céu azul e o horizonte distante e branco. A visibilidade na
estrada estava perfeita. De longe viram a pequena mancha atravessando a rua,
mas movia-se devagar e cambaleante. Havia tempo bastante para ir e voltar de um
lado a outro da pista, pelo menos uma dúzia de vezes. Mas a mancha crescia no
centro da pista, deslocando-se meio metro para frente, metro e meio para trás.
A figura tomou vulto à medida que o carro se aproximava, dando-lhe formas
humanas.
-Cuidado – disse o passageiro,
enquanto o motorista tirava o pé do acelerador por prevenção. Ainda estavam
longe do homem, mas já podiam perceber seus trajes e a sujeira impregnada em
sua roupa, pele e cabelos. Era um homem alto e forte, e certamente ainda estava
longe dos quarenta anos.
- No auge dos seus anos
produtivos trocando a saúde e o trabalho pelo vício e a consequente miséria. –
pensavam com um misto de pena e descaso.
Passaram ao lado dele bem lentamente,
e ele os encarou nos olhos, acompanhando com a cabeça e depois com todo o corpo
o movimento do carro, até as pernas se cruzarem e o corpo desabar no chão. Os
dois se olharam, ambos pensando em sugerir uma rápida parada, mas não disseram
nada.
***
O estranho que entrou no
restaurante chamava a atenção não pelo barulho que fez abrindo a porta
violentamente, nem pela respiração ofegante, mas pelos trajes e paramentos que
trazia no corpo. As tatuagens e piercings
davam-lhe aspecto rude e agressivo.
- Conheço esse cara – sussurrou o
motorista para seu colega, escondendo a boca com a mão espalmada – cresceu na
igreja junto comigo. Era uma boa pessoa, mas há anos não o vejo mais lá.
O assunto da decadência humana
ganhava agora novo fôlego. Desviaram a argumentação para o inacreditável fato
de que alguém, tendo sido crente, pudesse tomar um outro caminho e largar a
igreja. A preocupação com os rumos da humanidade era tanta que nem sequer
perceberam o assunto que o estranho tratava com o atendente do hotel. Viram
apenas que, depois de algumas frases rápidas, ambos saíram em direção ao
estacionamento.
Os dois amigos levantaram-se e se
dirigiram ao caixa enquanto conversavam. Tinham que pegar a estrada novamente
para chegar a tempo ao show. Sabiam
da importância de estarem presentes lá, no grupo de intercessores, para que o
resultado depois do apelo fosse positivo.
Nesse instante a porta do hotel
se abriu novamente com violência. O atendente e o estranho amparavam, apoiado
nos ombros, um homem cambaleante.
- Ele foi assaltado, surrado e
abandonado à própria morte na beira da estrada – comentou aflito o atendente
diante do olhar assustado dos dois amigos.
A cena lhes era familiar. Os
olhares da vítima e dos amigos cruzaram-se novamente. Enquanto era lentamente
carregado hotel adentro, seus olhos permaneciam atraídos pelo olhar ainda
espantado dos crentes. Olhos nos olhos, as cabeças de ambos giravam sobre o
corpo, acompanhando o movimento da vítima, até que suas pernas trançaram, mas
não chegaram a cair.
Já dentro do carro, viram o homem
tatuado deixando algum dinheiro no balcão, enquanto o atendente do hotel trazia
água e algum alimento para o homem abandonado na beira da estrada. Mas estavam
atrasados e tinham grandes expectativas em relação ao show. Muitas vidas haveriam de ser salvas lá.
Texto extraído do Livro "Igreja estre aspas - Somos de pedra ou gente?" por Tuco Egg - Ed. Grafar
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