O Brasil sofre. De repente todos nos sentimos irmanados pela dor. O
trauma de saber que pelo menos 232 vidas foram arrancadas prematuramente
parece demais. Apesar de saber que no Brasil se faz vista grossa à
legislação que previne acontecimentos como o de Santa Maria, apesar de
todos os senões que evitariam tantas lágrimas, nos vemos mais uma vez
diante do que a filosofia trata como contingência. Esclareço:
contingência significa que há acontecimentos desnecessários. Os fatos
tenebrosos não fazem parte de um encadeamento inevitável.
Afirmar que uma tragédia pode ser evitada implica em que ela não foi
orquestrada por uma divindade. Na contingência fatos ocorrem sem alguma
razão que os explique ou justifique, e que escaparam da engrenagem de
causa e efeito. Se o teto de uma igreja cai, um avião despenca, uma
boate pega fogo, é porque o mundo contém espaço para acidentes –
causados por negligência, falha humana ou mecânica- e podem matar sem
que se atrelem a fado, destino, punição ou plano de Deus.
Sem atinar, muitos repetem a crença de que só se morre quando chega a
hora. Para que tal afirmação seja verdadeira, destino precisaria vir
escrito com “d” maiúsculo, pois necessitaria de inteligência e controle
para reunir em uma casa de espetáculo, avião ou ônibus, todas as pessoas
destinadas a morrer naquele dia específico. Acreditar assim concede à
fatalidade um poder apavorante: imaginar que jovens, seduzidos por uma
orquestração oculta, entraram como gado no matadouro.
Da mesma forma, muitos tentam encadear os eventos acidentais da vida,
supondo que Deus “permite” sinistros com algum propósito. Querem dizer
que cada pessoa, com histórias, projetos, sonhos, viu-se arrancada da
existência “porque Deus assim quis”. O objetivo de Deus seria um
mistério que ninguém entende e será revelado a longo prazo?
Como ter fé em um Deus que “deixa” rapazes e moças se pisotearem até a
morte? Ele utiliza eventos macabros para ensinar as pessoas a terem
medo dele? Esse é o seu jeito de produzir arrependimento? Tal
entendimento faria com que a biografia de cada indivíduo que se perdeu
fosse descartável. Deus precisaria, inclusive, manter-se frio,
desprezando as lágrimas de mães e pais. Alguns chegam a ensinar que o
Divino Oleiro faz o que quer e não podemos questioná-lo. Deus mata,
afoga, asfixia e dá as costas em “vontade permissiva” porque deve
conduzir a macro história para a sua glória final?
Nas grandes tragédias, alguns se contentam em explicar os eventos
através da doutrina do controle absoluto. Afirmam que Deus tem todo o
poder e não seria difícil para ele reunir em um só lugar as pessoas que
deveriam morrer. Um Deus com requintes desse maquiavelismo, não passaria
de um demônio. Deus é bom. Satisfaz pensar que na divina economia Deus
ainda vai compensar a morte absurdamente desnecessária de tantos jovens?
Difícil explicar tal conceito aos pais, avós e parentes que sonharam em
vê-los terminando a faculdade, casando e tendo filhos. Bastaria falar
da vida depois da morte para consolar mais de duzentas mães acorrentadas
à trágica realidade de que Alguém lhes roubou a razão de viver?
A idéia de que Deus tem um plano para cada morte se esvazia diante
dos números. Aviões caem, ônibus tombam, boates incendeiam. Todos os
dias incontáveis acidentes acontecem. Como explicar as balas perdidas,
os erros médicos e os atropelamentos provocados por bêbados? Todos
cumprem alguma ordem ou são inevitáveis? Uma senhora de nossa
comunidade caiu da laje de sua casa em construção, quebrou a coluna e
ficou paraplégica. Ela fotografava a obra para que a filha lhe ajudasse
nas despesas do acabamento. A mais tosca explicação que a teologia
poderia dar ao seu infortúnio é que Deus tem um plano para deixá-la
paralítica ou a puniu por algum pecado.
Jesus considerou em seus ensinos um mundo contingente. Contradizendo a
religiosidade popular judaica, ele desconectou a queda de uma torre de
qualquer desígnio divino. Não concordou com a insinuação dos discípulos
de que a cegueira de um mendigo era consequência do pecado dele ou de
seus antepassados. No Sermão do Monte, Cristo advertiu os seus
seguidores de que mesmo alicerçando a casa sobre a rocha, eles não
seriam poupados dos ventos contrários e da tempestade.
O mundo das relações, devido ao amor, precisa de liberdade, e essa
liberdade produz contingência. Portanto, acidentes, percalços,
incidentes, fazem parte da condição humana. O contrário seria absoluta
segurança. Sem a ameaça do sofrimento, sem a possibilidade da morte
prematura, não enfrentaríamos ameaça de espécie alguma. Acontece que a
ausência da contingência nos desumanizaria. A consciência do risco de
adoecer e a imprevisibilidade da morte súbita, embora angustiantes, são o
preço que pagamos por nossa humanidade. Jesus encarnou a compaixão de
Deus, (compadecer significa sofrer junto), para nos mostrar que Deus
sabe do risco de viver. Ele reconhece que mal e bem acontecerão no
espaço da liberdade, por isso, oferece o ombro e as lágrimas. Deus não
deseja que nossa vida se perca no inferno da dor.
Qualquer desastre revela a inutilidade de pensar que o exercício
correto da religião ou a capacidade tecnológica bastam para anular a
contingência. A vida será sempre imprecisa e efêmera. Diante da
possibilidade do sofrimento, aprendamos a chorar com os que choram.
Soli Deo Gloria
http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/contingencia-sofrimento-e-deus/
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