Houve tempo em que o mundo era um deserto, e quem encontrava uma
igreja encontrava um tesouro. Hoje em dia, quando ninguém tem como
ignorar o mal que a igreja institucional perpetrou e permitiu
ao longo dos séculos, pode ser fácil ignorar que ao longo de todo esse
tempo a igreja permaneceu, a seu próprio modo ambíguo (porque
institucional) um refúgio e um conforto – num tempo em que essas
coisas eram consideravelmente mais raras e mais caras do que
no nosso.
Por quase dois milênios a igreja foi, no ocidente, o único lugar em
que gente de todos os sexos, raças e níveis sociais podia ser
concebivelmente vista debaixo do mesmo teto ao mesmo tempo. Homens e
mulheres, camponeses e magistrados, residentes e
estrangeiros, ricos e pobres fazendo alguma coisa juntos?
Oficialmente? Em público? Só se fosse na igreja. É claro que valiam e
se reencenavam, em sua maior parte, as diferenças de tratamento e
as distâncias sociais do mundo lá fora, mas incrivelmente todos os
joelhos se dobravam diante da mesma ideia.
A seu modo capenga e durante toda uma era, portanto, a igreja
mostrou-se capaz de oferecer um senso de pertença àqueles que não
podiam esperar encontrar absolutamente qualquer outro espaço
social que se mostrasse disposto a acolhê-las. Não é inconcebível
que a persistência e a proeminência da igreja como “lugar para
todos” tenha semeado no coração dos homens, num processo que pode ter
durado toda a era cristã, a noção de direitos humanos universais.
É lógico que a igreja formal não só recebia as muitas
recompensas dessa unanimidade, mas exigia também um preço, a
total conformidade de comportamento e de opinião.
O problema e o fascínio de uma instituição estão em que o seu
preço é também a sua recompensa: quando mais conformado e engajado
você se mostra, mais inabalável e compensador será o senso de
identidade gerado pela sua experiência – e menor o risco de você
sentir-se tentado a questionar a validade da instituição ou da
sua participação nela.
Curiosamente, esse efeito de reforço da experiência
eclesiástica mostrou-se mais importante e irresistível quando a
igreja começou a ser seriamente questionada pelo mundo fora das
suas portas.
A curva de secularização da sociedade começou a alçar-se nos séculos XVIII e XIX, mas seu desenho ficou nítido e seu trajeto completo somente no século XX.
E precisamente quando o mundo começou a duvidar
apaixonadamente de tudo que a igreja considerava certo e
importante, o mecanismo de reforço da experiência eclesiástica
mostrou-se mais lubrificado e eficaz.
Você podia passar uma semana difícil entre gente incrédula que
discordava estrepitosamente de todas as suas escolhas, renúncias
e prioridades, mas o domingo estava ali para reacender a sua fé.
Semanalmente a igreja se mostrava pronta a exercer a sua função de
máquina de reforçar as suas crenças, restaurando desse modo o seu
senso de identidade (e com isso a sua motivação para continuar).
A experiência eclesiástica nesse período deixou de ter muito a
ver com o conteúdo da fé e passou a concentrar-se na premiação da
participação. A reunião de adoração teve de se tornar muito
diferente, uma experiência muito mais satisfatória em termos
sensoriais, emocionais e sociais do que tinha sido por mil anos;
não devido a qualquer compromisso com a ortodoxia, mas de modo a
maximizar os mecanismos de reforço inerentes à participação na
instituição.
Todos se reuniam, se abraçavam, cantavam canções doces e
pungentes, choravam juntos a clara incompreensão do mundo e
davam tapinhas nas costas uns dos outros por resistirem bravamente
às tentações da liberdade. Confetes eram jogados por todos sobre
todos, as próximas datas e metas de venda eram reforçadas e todos
partiam para a semana no deserto com um senso de pertença revigorado.
Você saía dali inabalável, imbatível, unstoppable,
inteiramente pronto para resistir ao impacto de alguém que
discordasse de você. E saía também ignorante de que encontrar
alguém que discorda de você pode ser a coisa mais saudável,
apaixonante e curativa que pode acontecer a qualquer um.
O mundo está bastante secular para que a maioria das pessoas
concorde comigo que ninguém deveria ter de viver desse modo:
manipulado por recompensas que você também oferece a outros na
mesma condição e que por sua vez servem também para manipulá-los;
aterrorizado diante da independência de quem discorda de você
porque simplesmente existindo ela coloca em risco o seu sentimento
de identidade.
Mas no momento em que a curva da secularização estava completa e
parecia que se aproximava o dia em que todos caminharíamos de
modo consciente e responsável por esta terra, sem a necessidade
de mecanismos concorrentes de validação contínua, entrou em
cena a internet – e quando a internet ficou pronta completava-se
também o processo de igrejização da sociedade.
Em sua presente versão “social” a internet promove a
igrejização da experiência com uma eficácia que a própria
igreja não seria capaz de sonhar. Os velhos mecanismos de validação e
de reforço encontraram terreno perfeito para se instalar e
multiplicar: primeiro no salão árido dos blogs, dos powerpoints e
das mensagens encaminhadas de e-mail, mas mais recentemente nas
camas confortáveis do twitter e do facebook.
Nos velhos tempos as pessoas tinham de esperar o domingo para a
sua sessão semanal de reforço e premiação; hoje o reforço é
dispensado diretamente na veia, em modo streaming/transmissão contínua.
Enfim: a internet permite que você conviva sem pausa e sem
interferência com a opinião e com a aprovação de gente que você
escolheu a dedo porque pensa como você. 24 horas por dia. 7 dias por
semana. Tolerância zero.
Aquele tiozinho que você adicionou distraidamente ou
resignadamente no facebook: quando ele ousar manchar o seu mural
com uma mensagem cujo teor
político-filosófico-teológico-estético-musical-desportivo-
sexual que você não aprova, o que resta fazer? Tratar de excluir o
cara, ou pelo menos desinscrever-se do conteúdo dele, de modo a nunca
mais ter de se submeter a uma opinião diversa da sua. Não tenho
conta no facebook, mas se tivesse eu faria a mesma coisa,
especialmente porque as pessoas estão raramente certas: isto é, é
irritantemente comum que discordem de mim.
O facebook é este mundo ideal em que você só precisa conversar
com seus “amigos”, ganhando ao mesmo tempo o privilégio de que
poucos reis efetivamente desfrutaram, o de poder calar todas as
vozes dissidentes.
O paradoxo é que a experiência da internet “social” acaba nos
incentivando a mergulhar cada vez mais doentiamente, de modo
infantil mas também irresistível, em nós mesmos. Temos mais
“contatos” do que nunca, mas a operação da coisa garante que
terminaremos por consumir apenas a informação que reforça
aquilo em que nós mesmo já cremos.
Para dizer de outro modo, a internet e sua onipresença tornou a
experiência da igreja portátil, no sentido em que posso sentir a
cada instante a companhia e a aprovação de gente que compartilha
da minha visão de mundo. Meu mural do facebook é um espaço
aparentemente rico, vivo e diversificado, e provê evidência
inequívoca da quantidade de gente que me estima e que me aceita como
sou – mas trata-se de um espaço criado, desenvolvido e mantido de
modo a permanecer livre de verdadeira discussão e de
pensamentos discordantes. Você parece estar ouvindo uma
infinidade de vozes, mas com 900 amigos falando sem trégua no seu
mural você está apenas galvanizando aquilo em que você acredita: está ouvindo apenas a sua própria voz.
E já que você recompensa os outros do mesmo modo que eles
recompensam você, a tendência é que a opinião de vocês fique cada
vez mais polarizada em relação ao mundo lá fora. Não faz diferença
se você é cristão ou ateu, hetero ou gay, de direita ou de esquerda: a
internet social vai prover o senso de identidade e de ultraje de que
você precisa para poder ignorar ou vencer a ameaça dos seus
antagonistas.
Precisamente como o cristão que saía do culto de domingo com o
seu senso de identidade/alienação fortalecido, o facebook, o
twitter e seus amigos provém esse pano de fundo que nos permite
atravessar intocados a inconveniente experiência do mundo real
— trabalho, ônibus, metrô, calçada, restaurante, táxi, ricos e
pobres, nordestinos e yuppies, comunistas e empresários,
mendigos e boçais, gente protestante ou de candomblé. Caminhamos
inabaláveis em meio a um oceano de desconhecidos que não nos
compreenderiam e que não queremos compreender, porque
trazemos a nossa igreja dentro de nós. Fechados cada um no seu
mundo, celular em punho, estamos para todos os efeitos inteiramente
livres de interações embaraçosas e não-antecipadas com gente que
não escolhemos explicitamente aprovar.
Ao mesmo tempo, não é preciso ponderar muito para entender que
gastamos cada vez menos tempo com amigos de carne e osso. É quase
covardia recorrer ao ibope, mas as pesquisas concordam com o
óbvio: que gastamos menos tempo com conversas e encontros
informais do que fazíamos há dez, vinte anos. Nunca gastou-se tanto
tempo com entretenimento, exercício e transporte e tão pouco com
festas, bares, jogos, peladas, passeios, saraus, luaus, bailes,
banquetes, noites de São João, rodas de samba. Piqueniques, alguém
lembra do último? Receber amigos em casa, essas coisas do século XIII.
Qual foi a última vez que um amigo de carne e osso apresentou você a uma pessoa de carne e osso?
Pelo menos, no tempo da supremacia da igreja, o corpo-a-corpo
sem confortos do mundo real nos forçava a enfrentar uma maior
diversidade de valores, interesses e de opiniões. No universo
estendido do trabalho, da escola ou da vizinhança, e apesar de toda
a nossa cautela, amigos se impunham e nos conquistavam mesmo que
não quiséssemos. Mesmo quando, absurdamente, pensavam e agiam
como jamais faríamos nós mesmos.
Quem perde com essa ausência de interação é você, meu velho, sou
eu. Tendemos todos ao circular, tendemos todos à esterilidade, e
nossos círculos de confirmação nos fazem menores em vez de nos
fazer crescer.
Se queremos um dia chegar a experimentar o social – isto é,
chegar a ver o mundo como de fora de nós mesmos e ver a nós mesmos
como somos, – nossa única esperança é encontrar pelo menos uma pessoa
que discorde espetacularmente de nós... e que ainda se digne a ser
visto na nossa companhia com alguma cumplicidade e orgulho. Somos
sem qualquer dúvida um traste, mas pode quem sabe nos redimir um
amigo insuportável. Ele será talvez comunista se você for de
direita ou homofóbico se você for gay, mas faz parte do milagre.
Basta que seja alguém que temos de atender de madrugada, alguém que
ouse sentar no seu lugar, alguém que te conheça bem demais e que não
caia nas suas armadilhas.
Essa ameaça de redenção e de autoconhecimento nos espreita fora
do nosso círculo: não é à toa que mantenhamos travas em todas as
portas.
http://forjauniversal.com/2013/a-igrejizacao-da-sociedade/
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