terça-feira, 19 de março de 2013

A igrejização da sociedade (Paulo Brabo)

Houve tempo em que o mundo era um deserto, e quem encon­trava uma igreja encon­trava um tesouro. Hoje em dia, quando nin­guém tem como igno­rar o mal que a igreja ins­ti­tu­ci­o­nal per­pe­trou e per­mi­tiu ao longo dos sécu­los, pode ser fácil igno­rar que ao longo de todo esse tempo a igreja per­ma­ne­ceu, a seu pró­prio modo ambí­guo (por­que ins­ti­tu­ci­o­nal) um refú­gio e um con­forto – num tempo em que essas coi­sas eram con­si­de­ra­vel­mente mais raras e mais caras do que no nosso.

Por quase dois milê­nios a igreja foi, no oci­dente, o único lugar em que gente de todos os sexos, raças e níveis soci­ais podia ser con­ce­bi­vel­mente vista debaixo do mesmo teto ao mesmo tempo. Homens e mulhe­res, cam­po­ne­ses e magis­tra­dos, resi­den­tes e estran­gei­ros, ricos e pobres fazendo alguma coisa jun­tos? Ofi­ci­al­mente? Em público? Só se fosse na igreja. É claro que valiam e se reen­ce­na­vam, em sua maior parte, as dife­ren­ças de tra­ta­mento e as dis­tân­cias soci­ais do mundo lá fora, mas incri­vel­mente todos os joe­lhos se dobra­vam diante da mesma ideia.

A seu modo capenga e durante toda uma era, por­tanto, a igreja mostrou-​​se capaz de ofe­re­cer um senso de per­tença àque­les que não podiam espe­rar encon­trar abso­lu­ta­mente qual­quer outro espaço social que se mos­trasse dis­posto a acolhê-​​las. Não é incon­ce­bí­vel que a per­sis­tên­cia e a pro­e­mi­nên­cia da igreja como “lugar para todos” tenha seme­ado no cora­ção dos homens, num pro­cesso que pode ter durado toda a era cristã, a noção de direi­tos huma­nos universais.

É lógico que a igreja for­mal não só rece­bia as mui­tas recom­pen­sas dessa una­ni­mi­dade, mas exi­gia tam­bém um preço, a total con­for­mi­dade de com­por­ta­mento e de opinião.

O pro­blema e o fas­cí­nio de uma ins­ti­tui­ção estão em que o seu preço é tam­bém a sua recom­pensa: quando mais con­for­mado e enga­jado você se mos­tra, mais ina­ba­lá­vel e com­pen­sa­dor será o senso de iden­ti­dade gerado pela sua expe­ri­ên­cia – e menor o risco de você sentir-​​se ten­tado a ques­ti­o­nar a vali­dade da ins­ti­tui­ção ou da sua par­ti­ci­pa­ção nela.

Curi­o­sa­mente, esse efeito de reforço da expe­ri­ên­cia ecle­siás­tica mostrou-​​se mais impor­tante e irre­sis­tí­vel quando a igreja come­çou a ser seri­a­mente ques­ti­o­nada pelo mundo fora das suas portas.

A curva de secu­la­ri­za­ção da soci­e­dade come­çou a alçar-​​se nos sécu­los XVIII e XIX, mas seu dese­nho ficou nítido e seu tra­jeto com­pleto somente no século XX. E pre­ci­sa­mente quando o mundo come­çou a duvi­dar apai­xo­na­da­mente de tudo que a igreja con­si­de­rava certo e impor­tante, o meca­nismo de reforço da expe­ri­ên­cia ecle­siás­tica mostrou-​​se mais lubri­fi­cado e eficaz.

Você podia pas­sar uma semana difí­cil entre gente incré­dula que dis­cor­dava estre­pi­to­sa­mente de todas as suas esco­lhas, renún­cias e pri­o­ri­da­des, mas o domingo estava ali para rea­cen­der a sua fé. Sema­nal­mente a igreja se mos­trava pronta a exer­cer a sua fun­ção de máquina de refor­çar as suas cren­ças, res­tau­rando desse modo o seu senso de iden­ti­dade (e com isso a sua moti­va­ção para continuar).

A expe­ri­ên­cia ecle­siás­tica nesse período dei­xou de ter muito a ver com o con­teúdo da fé e pas­sou a concentrar-​​se na pre­mi­a­ção da par­ti­ci­pa­ção. A reu­nião de ado­ra­ção teve de se tor­nar muito dife­rente, uma expe­ri­ên­cia muito mais satis­fa­tó­ria em ter­mos sen­so­ri­ais, emo­ci­o­nais e soci­ais do que tinha sido por mil anos; não devido a qual­quer com­pro­misso com a orto­do­xia, mas de modo a maxi­mi­zar os meca­nis­mos de reforço ine­ren­tes à par­ti­ci­pa­ção na instituição.

Todos se reu­niam, se abra­ça­vam, can­ta­vam can­ções doces e pun­gen­tes, cho­ra­vam jun­tos a clara incom­pre­en­são do mundo e davam tapi­nhas nas cos­tas uns dos outros por resis­ti­rem bra­va­mente às ten­ta­ções da liber­dade. Con­fe­tes eram joga­dos por todos sobre todos, as pró­xi­mas datas e metas de venda eram refor­ça­das e todos par­tiam para a semana no deserto com um senso de per­tença revigorado.

Você saía dali ina­ba­lá­vel, imba­tí­vel, uns­top­pa­ble, intei­ra­mente pronto para resis­tir ao impacto de alguém que dis­cor­dasse de você. E saía tam­bém igno­rante de que encon­trar alguém que dis­corda de você pode ser a coisa mais sau­dá­vel, apai­xo­nante e cura­tiva que pode acon­te­cer a qual­quer um.

O mundo está bas­tante secu­lar para que a mai­o­ria das pes­soas con­corde comigo que nin­guém deve­ria ter de viver desse modo: mani­pu­lado por recom­pen­sas que você tam­bém ofe­rece a outros na mesma con­di­ção e que por sua vez ser­vem tam­bém para manipulá-​​los; ater­ro­ri­zado diante da inde­pen­dên­cia de quem dis­corda de você por­que sim­ples­mente exis­tindo ela coloca em risco o seu sen­ti­mento de identidade. 

Mas no momento em que a curva da secu­la­ri­za­ção estava com­pleta e pare­cia que se apro­xi­mava o dia em que todos cami­nha­ría­mos de modo cons­ci­ente e res­pon­sá­vel por esta terra, sem a neces­si­dade de meca­nis­mos con­cor­ren­tes de vali­da­ção con­tí­nua, entrou em cena a inter­net – e quando a inter­net ficou pronta completava-​​se tam­bém o pro­cesso de igre­ji­za­ção da sociedade.

Em sua pre­sente ver­são “social” a inter­net pro­move a igre­ji­za­ção da expe­ri­ên­cia com uma efi­cá­cia que a pró­pria igreja não seria capaz de sonhar. Os velhos meca­nis­mos de vali­da­ção e de reforço encon­tra­ram ter­reno per­feito para se ins­ta­lar e mul­ti­pli­car: pri­meiro no salão árido dos blogs, dos power­points e das men­sa­gens enca­mi­nha­das de e-​​mail, mas mais recen­te­mente nas camas con­for­tá­veis do twit­ter e do facebook.

Nos velhos tem­pos as pes­soas tinham de espe­rar o domingo para a sua ses­são sema­nal de reforço e pre­mi­a­ção; hoje o reforço é dis­pen­sado dire­ta­mente na veia, em modo stre­a­ming/​transmissão contínua. 

Enfim: a inter­net per­mite que você con­viva sem pausa e sem inter­fe­rên­cia com a opi­nião e com a apro­va­ção de gente que você esco­lheu a dedo por­que pensa como você. 24 horas por dia. 7 dias por semana. Tole­rân­cia zero.

Aquele tio­zi­nho que você adi­ci­o­nou dis­trai­da­mente ou resig­na­da­mente no face­book: quando ele ousar man­char o seu mural com uma men­sa­gem cujo teor político-​​filosófico-​​teológico-​​estético-​​musical-​​desportivo-​​ sexual que você não aprova, o que resta fazer? Tra­tar de excluir o cara, ou pelo menos desinscrever-​​se do con­teúdo dele, de modo a nunca mais ter de se sub­me­ter a uma opi­nião diversa da sua. Não tenho conta no face­book, mas se tivesse eu faria a mesma coisa, espe­ci­al­mente por­que as pes­soas estão rara­mente cer­tas: isto é, é irri­tan­te­mente comum que dis­cor­dem de mim.

O face­book é este mundo ideal em que você só pre­cisa con­ver­sar com seus “ami­gos”, ganhando ao mesmo tempo o pri­vi­lé­gio de que pou­cos reis efe­ti­va­mente des­fru­ta­ram, o de poder calar todas as vozes dissidentes. 

O para­doxo é que a expe­ri­ên­cia da inter­net “social” acaba nos incen­ti­vando a mer­gu­lhar cada vez mais doen­ti­a­mente, de modo infan­til mas tam­bém irre­sis­tí­vel, em nós mes­mos. Temos mais “con­ta­tos” do que nunca, mas a ope­ra­ção da coisa garante que ter­mi­na­re­mos por con­su­mir ape­nas a infor­ma­ção que reforça aquilo em que nós mesmo já cremos. 

Para dizer de outro modo, a inter­net e sua oni­pre­sença tor­nou a expe­ri­ên­cia da igreja por­tá­til, no sen­tido em que posso sen­tir a cada ins­tante a com­pa­nhia e a apro­va­ção de gente que com­par­ti­lha da minha visão de mundo. Meu mural do face­book é um espaço apa­ren­te­mente rico, vivo e diver­si­fi­cado, e provê evi­dên­cia inequí­voca da quan­ti­dade de gente que me estima e que me aceita como sou – mas trata-​​se de um espaço cri­ado, desen­vol­vido e man­tido de modo a per­ma­ne­cer livre de ver­da­deira dis­cus­são e de pen­sa­men­tos dis­cor­dan­tes. Você parece estar ouvindo uma infi­ni­dade de vozes, mas com 900 ami­gos falando sem tré­gua no seu mural você está ape­nas gal­va­ni­zando aquilo em que você acre­dita: está ouvindo ape­nas a sua pró­pria voz.

E já que você recom­pensa os outros do mesmo modo que eles recom­pen­sam você, a ten­dên­cia é que a opi­nião de vocês fique cada vez mais pola­ri­zada em rela­ção ao mundo lá fora. Não faz dife­rença se você é cris­tão ou ateu, hetero ou gay, de direita ou de esquerda: a inter­net social vai pro­ver o senso de iden­ti­dade e de ultraje de que você pre­cisa para poder igno­rar ou ven­cer a ame­aça dos seus antagonistas.

Pre­ci­sa­mente como o cris­tão que saía do culto de domingo com o seu senso de identidade/​alienação for­ta­le­cido, o face­book, o twit­ter e seus ami­gos pro­vém esse pano de fundo que nos per­mite atra­ves­sar into­ca­dos a incon­ve­ni­ente expe­ri­ên­cia do mundo real — tra­ba­lho, ôni­bus, metrô, cal­çada, res­tau­rante, táxi, ricos e pobres, nor­des­ti­nos e yup­pies, comu­nis­tas e empre­sá­rios, men­di­gos e boçais, gente pro­tes­tante ou de can­dom­blé. Cami­nha­mos ina­ba­lá­veis em meio a um oce­ano de des­co­nhe­ci­dos que não nos com­pre­en­de­riam e que não que­re­mos com­pre­en­der, por­que tra­ze­mos a nossa igreja den­tro de nós. Fecha­dos cada um no seu mundo, celu­lar em punho, esta­mos para todos os efei­tos intei­ra­mente livres de inte­ra­ções emba­ra­ço­sas e não-​​antecipadas com gente que não esco­lhe­mos expli­ci­ta­mente aprovar.

Ao mesmo tempo, não é pre­ciso pon­de­rar muito para enten­der que gas­ta­mos cada vez menos tempo com ami­gos de carne e osso. É quase covar­dia recor­rer ao ibope, mas as pes­qui­sas con­cor­dam com o óbvio: que gas­ta­mos menos tempo com con­ver­sas e encon­tros infor­mais do que fazía­mos há dez, vinte anos. Nunca gastou-​​se tanto tempo com entre­te­ni­mento, exer­cí­cio e trans­porte e tão pouco com fes­tas, bares, jogos, pela­das, pas­seios, saraus, luaus, bai­les, ban­que­tes, noi­tes de São João, rodas de samba. Pique­ni­ques, alguém lem­bra do último? Rece­ber ami­gos em casa, essas coi­sas do século XIII

Qual foi a última vez que um amigo de carne e osso apre­sen­tou você a uma pes­soa de carne e osso?

Pelo menos, no tempo da supre­ma­cia da igreja, o corpo-​​a-​​corpo sem con­for­tos do mundo real nos for­çava a enfren­tar uma maior diver­si­dade de valo­res, inte­res­ses e de opi­niões. No uni­verso esten­dido do tra­ba­lho, da escola ou da vizi­nhança, e ape­sar de toda a nossa cau­tela, ami­gos se impu­nham e nos con­quis­ta­vam mesmo que não qui­sés­se­mos. Mesmo quando, absur­da­mente, pen­sa­vam e agiam como jamais faría­mos nós mesmos.

Quem perde com essa ausên­cia de inte­ra­ção é você, meu velho, sou eu. Ten­de­mos todos ao cir­cu­lar, ten­de­mos todos à este­ri­li­dade, e nos­sos cír­cu­los de con­fir­ma­ção nos fazem meno­res em vez de nos fazer crescer.

Se que­re­mos um dia che­gar a expe­ri­men­tar o social – isto é, che­gar a ver o mundo como de fora de nós mes­mos e ver a nós mes­mos como somos, – nossa única espe­rança é encon­trar pelo menos uma pes­soa que dis­corde espe­ta­cu­lar­mente de nós... e que ainda se digne a ser visto na nossa com­pa­nhia com alguma cum­pli­ci­dade e orgu­lho. Somos sem qual­quer dúvida um traste, mas pode quem sabe nos redi­mir um amigo insu­por­tá­vel. Ele será tal­vez comu­nista se você for de direita ou homo­fó­bico se você for gay, mas faz parte do mila­gre. Basta que seja alguém que temos de aten­der de madru­gada, alguém que ouse sen­tar no seu lugar, alguém que te conheça bem demais e que não caia nas suas armadilhas.

Essa ame­aça de reden­ção e de auto­co­nhe­ci­mento nos espreita fora do nosso cír­culo: não é à toa que man­te­nha­mos tra­vas em todas as portas.


Paulo Brabo, 15 de março de 2013


http://forjauniversal.com/2013/a-igrejizacao-da-sociedade/



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